Por: Kant de Voronha
— Lições e Significados para o Futuro da Democracia em Moçambique
O apuramento intermédio da votação de 9 de outubro de 2024 nos 23 distritos da província de Nampula revelou um dado alarmante: 72,59% dos eleitores não compareceram às urnas. De um total de 3.266.882 eleitores inscritos, apenas 927.996 exerceram o direito de voto. Essa abstenção massiva, que ultrapassa 71%, reflete um descontentamento profundo e, talvez mais do que isso, a desconexão entre a população e o sistema político do país. A província de Nampula, maior círculo eleitoral de Moçambique, se destaca agora como um símbolo de alerta, um indicador de que o tecido democrático está desgastado, exigindo uma reflexão urgente e profunda.
Lições para as Próximas Eleições
O primeiro ponto que emerge dessa elevada taxa de abstenção é a necessidade de reavaliar o funcionamento das instituições democráticas. Eleições deveriam ser momentos em que o cidadão reafirma sua voz e seu poder de decisão. No entanto, quando mais de 70% da população se abstém, o que isso nos diz sobre a eficácia desse sistema? A mensagem parece clara: há uma falha de comunicação entre os eleitores e os candidatos. Mais ainda, há uma crise de confiança que afasta os cidadãos das urnas, deixando evidente a necessidade de uma reforma estrutural no sistema político.
Os partidos políticos, os líderes e os futuros candidatos devem compreender que essa abstenção não é um fenómeno passageiro, mas um sintoma de algo muito mais profundo. As campanhas eleitorais precisam ser mais inclusivas e representativas das necessidades reais da população. É necessário recuperar o valor do voto, não apenas como um direito, mas como uma ferramenta eficaz de mudança social e política.
Que Significado para os Dirigentes do Estado Moçambicano?
Para os dirigentes moçambicanos, esse resultado é um sério sinal de advertência. A abstenção elevada significa, por um lado, que os cidadãos não se sentem representados pelos que detêm o poder e, por outro, que as promessas feitas ao longo de várias eleições consecutivas não estão se materializando de forma tangível na vida das pessoas. O distanciamento entre os governantes e o povo nunca foi tão evidente. Se mais de 70% da população não se sente motivada a participar no processo que elege seus líderes, o que isso sugere sobre a legitimidade dos eleitos?
A resposta não está apenas numa melhor comunicação ou em promessas de campanha, mas numa reestruturação real das políticas públicas. O povo de Nampula, assim como outras províncias que também enfrentaram altas taxas de abstenção, precisa ver melhorias concretas em áreas cruciais como educação, saúde, infraestrutura e, acima de tudo, emprego. A abstenção recorde é um reflexo de um desespero generalizado, um sentimento de que nada mudará, independentemente de quem esteja no poder.
O Valor da Participação dos Cidadãos e o Perigo desse Comportamento
A participação dos cidadãos é o coração de qualquer democracia funcional. Quando essa participação é negada ou ignorada, como vimos em Nampula, a essência da democracia está ameaçada. A abstenção massiva não apenas enfraquece a legitimidade do governo, mas também compromete a própria ideia de governação pelo povo. A mensagem enviada por esses números é clara: há um afastamento crítico entre a população e o sistema político, e isso pode ter repercussões graves.
O perigo da abstenção não está apenas na erosão da representatividade. Quando os cidadãos sentem que suas vozes não são ouvidas, que o sistema está falido ou corrompido, cria-se um terreno fértil para o descontentamento, a instabilidade e, em casos mais extremos, até a violência. Quando a participação dos cidadãos é anulada, abre-se um vazio que pode ser preenchido por forças antidemocráticas, sejam elas autoritárias ou populistas.
Do ponto de vista sociofilosófico, a abstenção em massa pode ser interpretada como uma forma de resistência passiva ao status quo. Em vez de usar a violência ou a revolta aberta, a população opta pelo silêncio, um silêncio que ressoa com o desprezo por um sistema que já não os representa. A isto chamo de linguagem simbólica do povo macua. Sim, a revolta de um macua não é através de armas ou violência como se assiste recorrentemente na zona sul, concretamente nas cidades de Mapupo e Matola. Os macuas revoltam-se silenciosamente, de forma inerte e impotente. É a famosa frase “Muhálèle, yóneke mmansaya: não lhe diga nada, verá sozinho”. Este comportamento reflete a alienação política descrita por pensadores como Jean-Paul Sartre e Hannah Arendt, onde o indivíduo se desliga das estruturas que deveriam ser ferramentas de sua libertação.
Conclusão
A abstenção recorde em Nampula durante as eleições de 2024 não é apenas uma estatística; é um retrato do estado atual da democracia moçambicana. É um chamado para que os dirigentes do Estado e os futuros candidatos olhem mais de perto para as necessidades e expectativas de seus cidadãos. É, acima de tudo, um sinal de que algo está profundamente errado no sistema político e que, sem mudanças significativas, o distanciamento entre governantes e governados só aumentará.
Para os cidadãos, a abstenção pode ter sido uma escolha neste ciclo eleitoral, mas essa escolha tem consequências que reverberarão nas próximas eleições e, possivelmente, em todo o tecido democrático do país. O que está em jogo não é apenas a eleição de um presidente ou um representante legislativo, mas o próprio valor do voto como ferramenta de transformação e participação. O futuro de Moçambique depende, em grande medida, de como esse abismo entre o Estado e o cidadão será fechado antes que seja tarde demais. E mais não disse!