
Por: Kant de Voronha
Moçambique comemora 30 anos de eleições multipartidárias (2024-1994), um marco que deveria representar o florescer de uma democracia plural e inclusiva. No entanto, o que se vê é um caminho que, embora pontuado por promessas de mudança, parece refém de práticas monopolistas que perpetuam a hegemonia de um único partido. A democracia, conceito originalmente vinculado à ideia de alternância de poder e representação popular, torna-se, neste contexto, uma sombra do ideal.
Desde as primeiras eleições multipartidárias em 1994, que puseram fim a um período de guerra civil e abraçaram a esperança de um novo começo, a FRELIMO tem sido o partido dominante. A promessa de diversidade política esbarrou na realidade de um país onde a competição entre partidos é desigual, e onde a infraestrutura democrática parece servil aos interesses de uma única elite política. Sob essa lente, os 30 anos de eleições não podem ser celebrados como um triunfo democrático, mas como um período de transição frustrada.
A palavra democracia, no caso moçambicano, adquire uma conotação ambígua. Se, por um lado, existe a liberdade formal de organização partidária, por outro, a prática política revela um cenário onde o poder está concentrado num só grupo, e os demais partidos desempenham um papel quase figurativo, indesejado e como se fosse um inimigo à vista do abate frenético. A alternância política, um dos pilares da democracia, nunca aconteceu plenamente. Seria, portanto, exagero falar numa “democracia monopartidária”?
A resposta a essa pergunta requer uma reflexão mais profunda. Numa verdadeira democracia, espera-se que haja espaço para o debate público vigoroso, que os diferentes grupos políticos tenham as mesmas condições de disputar e que as instituições, como a Comissão Nacional de Eleições (CNE) e o Conselho Constitucional (CC), atuem de forma independente. No entanto, as recorrentes denúncias de fraudes eleitorais, manipulações de resultados e repressão política indicam que o sistema eleitoral de Moçambique funciona como um instrumento de perpetuação do status quo. Num sistema assim, como o de Moçambique, o voto, embora aparentemente livre, torna-se um ritual de legitimação de um poder pré-determinado, em vez de ser um mecanismo de escolha genuína.
Se a democracia é a vontade do povo manifestada nas urnas, qual é o significado dessa vontade quando condicionada por um ambiente de desigualdade política? A persistente hegemonia de um partido pode ser interpretada como uma vitória da estabilidade, mas também pode ser vista como a manutenção de uma estrutura que beneficia poucos em detrimento de muitos. No fundo, a questão que emerge é: que tipo de democracia queremos para Moçambique? Uma democracia formal, onde as eleições são celebradas como festivais de legitimação, ou uma democracia real, onde as eleições são espaços de verdadeira escolha e mudança?
O cenário político moçambicano reflete um país dividido entre as aspirações democráticas de seus cidadãos e as estratégias de manutenção de poder de seus líderes. Os últimos 30 anos foram marcados por uma luta incessante para equilibrar esses dois pólos. A oposição, especialmente a RENAMO e agora (2024) o PODEMOS, que surgiu como a principal força contestadora, frequentemente viu suas demandas por justiça eleitoral frustradas. Mesmo com algumas vitórias pontuais, como a administração de algumas autarquias, o alcance do poder central sempre pareceu distante. As eleições autárquicas de 2023 revelaram uma mancha indelével da ausência de vontade política para uma autêntica alternância política e governativa em Moçambique.
Assim, a democracia moçambicana revela-se mais como um conceito instrumental do que uma realidade vivida. A nossa democracia é um monopartidária original com roupagem formal (teórico) de multipartidarismo. O monopólio de poder, por sua vez, revela a fragilidade das instituições e a falta de mecanismos robustos que garantam uma competição justa e equilibrada. E, enquanto isso, o povo moçambicano segue exercendo o seu direito ao voto, muitas vezes sob o peso de um ceticismo silencioso: será que desta vez as eleições trarão mudanças reais?
Nos círculos filosóficos, este cenário poderia ser analisado à luz da teoria crítica, que nos ensina a desconfiar das estruturas de poder que, em nome de uma suposta liberdade, restringem o verdadeiro exercício democrático. A liberdade formal, sem a garantia de igualdade substancial, transforma-se numa ferramenta de controle. E, como disse o filósofo francês Michel Foucault, o poder não é apenas repressivo, mas também produtivo; ele cria sujeitos obedientes que participam, ainda que de forma inconsciente, na manutenção de sua própria subordinação.
Os 30 anos de eleições em Moçambique, assim, são uma lição não apenas para o nosso país, mas para toda a África. Eles nos lembram que a democracia não é um evento, mas um processo contínuo, que requer vigilância constante e a disposição para corrigir seus desvios. Moçambique, com seu povo resiliente e sua história de lutas, muitas vezes lutas pós-eleitorais, ainda tem a chance de reescrever essa narrativa. Mas isso exige, antes de tudo, uma reflexão coletiva sobre o verdadeiro significado da democracia e um compromisso renovado com os ideais que a sustentam.
Os próximos anos serão decisivos. Se a nação moçambicana escolher seguir o mesmo caminho, as futuras gerações continuarão a viver numa democracia de fachada. Se, no entanto, houver uma ruptura com o passado e uma verdadeira abertura para a pluralidade política, Moçambique poderá finalmente trilhar o caminho de uma democracia autêntica, onde o poder não é um monopólio, mas um bem comum, acessível a todos.
Sou otimista que a juventude moçambicana está comprometida a ser instrumento inegável de reconstrução nacional da história democrática deste país. Se queremos a Paz, devemos promover um processo eleitoral democrático. Significa dizer que não podemos ter medo de reconhecer nossos erros e respeitar a vontade popular manifesta nas urnas.
E mais não disse!