
A Manipulação ao Serviço de Poucos
Por: Kant de Voronha
Em Moçambique, entre as páginas de jornais e as ondas do éter, oculta-se uma prática que devora o que deveria ser a essência do jornalismo: a busca pela verdade. Esse fenómeno, descrito por Cantífula de Castro como “Karakatismo”, é uma luta pela sobrevivência no ambiente volátil do jornalismo contemporâneo, mas que em sua face mais sombria se manifesta como o jornalismo de encomenda. Aqui, o compromisso com a objetividade e a verdade cede lugar à submissão aos interesses de poderosos agentes económicos e políticos.
A teoria do Karakatismo sugere que os jornalistas, como “karakatáveis” (termo de origem popular, que remete a alguém que vive de serviços precários e informais), travam uma batalha constante para garantir sua sobrevivência num ambiente cada vez mais mercantilizado e escasso de oportunidades dignas. Esse quadro faz com que, por vezes, abandonem seu compromisso ético, sucumbindo à pressão de grupos endinheirados que encomendam notícias sob medida, fabricando versões convenientes dos fatos, que servem como engrenagens de seus interesses.
O jornalismo de encomenda, nesse sentido, torna-se uma distorção corrosiva da função primordial da comunicação social. Ao invés de iluminar a verdade, serve como uma cortina de fumaça, ofuscando os fatos e transformando a opinião pública numa marionete nas mãos de quem tem recursos para mover os fios. As verdades são fragmentadas, distorcidas ou completamente reescritas. E assim, o público, que confia na imprensa para lhe fornecer uma janela transparente para o mundo, vê-se preso num espelho de funhouse[1], onde tudo é distorcido e manipulado.
O que começa como uma simples luta pela sobrevivência profissional acaba por se converter numa perigosa simbiose entre os jornalistas e os financiadores de suas publicações. Aqui, a “notícia” já não é um reflexo do real, mas um produto construído sob demanda, vendido ao melhor pagador. O repórter transforma-se num prestador de serviços para quem oferece maior compensação financeira. As pautas não nascem de uma investigação genuína, mas de um cheque previamente assinado, um envelope discretamente colocado sob a mesa.
As consequências desse tipo de jornalismo são devastadoras para a sociedade moçambicana. A confiança na mídia se deteriora. As vozes que deveriam denunciar os abusos de poder são silenciadas ou, pior ainda, tornam-se cúmplices dos mesmos abusos que deveriam combater. Os cidadãos são inundados por narrativas manipuladas, incapazes de distinguir entre o que é factual e o que é fabricado. E, assim, os grandes agentes económicos e os políticos endinheirados avançam suas agendas, escudados pelo silêncio ou pela distorção orquestrada.
Cantífula de Castro, na teoria do Karakatismo, alerta para essa relação simbiótica e perigosa entre jornalistas e elites económicas, reconhecendo que o jornalismo de encomenda se alimenta das desigualdades estruturais da profissão. A precariedade das condições de trabalho, a falta de independência financeira das redações e a pressão para agradar patrocinadores ou anunciantes criam o ambiente perfeito para a proliferação do Karakatismo. Trata-se de uma engrenagem onde jornalistas, forçados a sobreviver, oferecem sua pena em troca de proteção económica, e com ela, a sociedade é levada por labirintos de meias-verdades e falsidades mascaradas de legitimidade.
Assim, o jornalismo, que deveria ser a lanterna na escuridão dos tempos, torna-se um instrumento de controle, de manipulação e, em última instância, de desinformação. Moçambique não é estranho a esse cenário, onde muitas vezes a denúncia se cala, e a mentira se propaga, como se a palavra tivesse um preço.
No entanto, a teoria do Karakatismo, ao mesmo tempo que diagnostica essa realidade, não deixa de oferecer uma possibilidade de resistência. Ao expor as entranhas dessa prática perversa, Cantífula de Castro chama a atenção para a necessidade de reformas profundas no campo jornalístico, começando pela valorização do profissional de imprensa, assegurando-lhe condições dignas de trabalho e independência editorial. A verdadeira luta pela sobrevivência do jornalismo não deveria ser aquela em que se vende a alma ao poder, mas aquela em que se preserva a integridade da palavra e o compromisso com o público.
A sobrevivência, ao contrário do que o jornalismo de encomenda prega, não está em se tornar um “karakatável” submisso. Está em resgatar a ética, em restaurar o papel do jornalista como guardião da verdade e em devolver à imprensa seu lugar como pilar da democracia. Se o jornalismo moçambicano quiser, de fato, sobreviver, não será através de mentiras bem pagas, mas pela luta firme e incansável por uma informação livre, justa e verdadeira.
E assim, a teoria de Castro ecoa como um grito de alerta em meio à escuridão: o jornalismo de encomenda pode garantir a sobrevivência de alguns, mas condena toda a sociedade à cegueira e à servidão da desinformação. E mais não disse!
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[1] Um espelho de funhouse refere-se àqueles espelhos deformados que costumam estar em parques de diversões ou casas de espelhos, também chamadas de “funhouses“. Esses espelhos distorcem a imagem refletida, tornando as pessoas ou objetos que aparecem neles exageradamente alongados, encurtados, ou curvados de maneiras estranhas e engraçadas. Na linguagem figurativa, o termo “espelho de funhouse“ é frequentemente utilizado para descrever uma visão distorcida da realidade, onde os fatos são alterados ou manipulados para parecerem algo que não são, confundindo a percepção de quem observa. No contexto do jornalismo ou comunicação, por exemplo, um “espelho de funhouse” pode se referir à maneira como a verdade é distorcida ou manipulada para enganar ou desinformar o público.