Por Kant de Voronha
Eu não posso escovar o chefe, porque há sangue nas cerdas da escova e cinzas nos dentes do poder. O chefe é intocável, um deus fabricado por urnas quebradas e promessas desfeitas. Eu não posso escová-lo, porque seu sorriso brilha com a luz falsa dos holofotes, enquanto a escuridão devora as ruas de Moçambique.
As eleições passaram, mas não se foram. O dia 9 de outubro é uma ferida aberta que sangra protestos, greves e tiros. Escaramuças sociopolíticas varrem a nação como ventos enraivecidos, levantando poeira em cada esquina, em cada alma. Manifestantes caem, baleados por balas que deveriam proteger, e não silenciar. Entre os nomes sussurrados em desespero estão Elvino Dias e Paulo Guambe, vítimas de uma guerra que não declararam, mas que os escolheu como mártires.
Há 30 anos, o povo sonhava com a alternância política, com o poder que mudava de mãos como uma tocha de esperança. Mas para que serve a alternância se o jogo é sempre o mesmo, com as cartas marcadas e os vencedores determinados antes mesmo de o primeiro voto ser depositado? Para que servem as eleições quando o resultado é um teatro, uma peça ensaiada onde a plateia é enganada?
O oceano de dinheiro gasto para erguer cabines de votação e imprimir boletins serve apenas para inundar os cofres de poucos, enquanto as ruas permanecem sedentas. Escolas fecham, hospitais desabam, estradas tornam-se trilhas de lama. Tudo isso para um espetáculo eleitoral onde o roteiro é conhecido, mas o final é sempre o mesmo: o chefe escova os dentes com o ouro roubado de nossas bocas.
A alternância política, nos prometeram, era a chave para a democracia. Mas que democracia é essa onde o grito do povo é abafado por sirenes? Onde as vozes dissonantes são silenciadas por bastões e balas? Onde os sonhos de liberdade são pisoteados por botas que marcham para proteger o poder, e não a justiça?
O chefe sorri. Ele sabe que está intocável. Enquanto isso, o povo grita: “Para que serve votar, se nossa escolha não conta? Para que serve protestar, se o silêncio é a única resposta?” Os manifestantes levantam cartazes, mas caem ao chão, vítimas de uma violência que deveria ser memória, não rotina.
Eu não posso escovar o chefe. Não posso limpá-lo das manchas de 30 anos de corrupção, de promessas quebradas, de mortes injustas. Ele é o espelho de um sistema que não quer mudar, que teme a alternância porque sabe que a verdade viria com ela.
Mas o povo sabe. E, nas ruas, nos murmúrios, nos cânticos de resistência, a verdade ecoa. Não é a escova que limpará o chefe, mas o vento da mudança, aquele que sopra silencioso e implacável, arrancando as máscaras e expondo o que se esconde por trás dos sorrisos dourados.
Eu não posso escovar o chefe. Mas posso afiar a voz, erguer o punho e acender a chama. Porque um dia, o ciclo quebrará. E nesse dia, o chefe não terá mais onde se esconder.