
Por Kant de Voronha
Naquele bairro onde as janelas eram olhos e as varandas se tornavam tribunais, as mulheres carregavam mais do que sacolas do mercado. Algumas traziam na ponta da língua um arsenal de histórias mal contadas, prontas para serem lançadas como flechas envenenadas. Entre risos dissimulados e conversas fiadas ao redor das panelas, o que se cozinhava não eram apenas refeições, mas tempestades em copos de água.
Havia uma figura central nesse teatro quotidiano: Dona Aurora. Bonita de longe, mas de perto exalava a acidez de uma fruta que nunca amadurece. Era sempre a primeira a saber de tudo e, claro, a última a verificar se o que dizia tinha algum resquício de verdade. Para ela, não importava se uma faísca era apenas uma fagulha ou o início de um incêndio. Ela soprava, sorrateira, até que a chama tomasse conta de tudo.
“Você soube que a Maria anda diferente? Deve estar traindo o marido,” cochichava Dona Aurora, enquanto revirava um cesto de tomates no mercado. “E a Joana? Aposto que aquele vestido caro veio de dinheiro sujo,” completava, disfarçando um sorriso que misturava inveja e satisfação.
O mais curioso é que as histórias de Aurora nunca tinham começo nem fim. Eram como novelas sem roteiros, mas que todos acompanhavam com fervor. Bastava um olhar atravessado, uma ausência não explicada ou um boato sem origem, e ela fazia disso uma ópera trágica, com direito a vilãs e mocinhas — embora, para Aurora, nenhuma mulher fosse realmente mocinha.
O palco preferido de Aurora era a rua, mas seu camarote era a igreja, onde olhava para os bancos alheios com ar de superioridade. Lá, entre cânticos e orações, ela tramava suas narrativas como quem borda um lenço, costurando detalhes falsos em retalhos de meias-verdades. Ao final da missa, o sermão mais ouvido era sempre o dela, em tom de confidência: “Não é por mal, mas achei que você deveria saber…”.
Mas não se enganem: Aurora não estava sozinha. Havia outras, um verdadeiro coro de línguas afiadas, que faziam do bairro um campo minado para qualquer mulher que ousasse se destacar. Quem era bonita demais, suspeita. Quem era discreta demais, também. O talento e a felicidade alheia pareciam ofensas pessoais àquelas que viviam para desconstruir o que nunca conseguiram construir.
Essas mulheres, com seus discursos envenenados, criavam muros onde deveriam haver pontes. Transformavam amizades em rivalidades, desconfianças em certezas, e pequenas diferenças em abismos intransponíveis. E tudo isso para quê? Para mascarar suas próprias inseguranças, suas frustrações mal resolvidas, seus sonhos nunca realizados.
Mas o que Aurora e suas parceiras de fofoca não entendiam é que a maledicência tem um preço. Palavras são como sementes: o que se planta, se colhe. E quem semeia o caos invariavelmente colhe solidão. Aos poucos, as pessoas começaram a se afastar, cansadas do ciclo tóxico. Quem antes ouvia suas histórias passou a ignorá-las, e Aurora ficou apenas com o eco de sua própria voz.
Há algo de profundamente triste nessa figura de língua afiada e coração amargo. Ela se alimenta da destruição alheia porque não sabe como construir algo próprio. E, assim, Aurora, como tantas outras, se torna prisioneira de sua própria teia de palavras vazias, condenada a assistir de longe enquanto as mulheres que tentou derrubar se erguiam ainda mais fortes.
No final, Dona Aurora não era uma vilã de novela, mas um aviso. Um lembrete de que o poder de uma mulher não está na língua que fere, mas na mão que acolhe; não na palavra que divide, mas na atitude que constrói. E que, por mais que a língua de prata corte, a verdade sempre encontra uma forma de costurar os laços que o ódio tentou romper. E mais não disse!