Por Kant de Voronha
Na redação abafada pelo calor das ideias e o peso das palavras que esperam ser moldadas, ele chega. O som da porta se abrindo anuncia mais um capítulo de sua tragicomédia. O ar, antes tomado pelo aroma do café preto e do papel recém-impresso, agora é invadido por um cheiro ácido e ardente, denunciando sua condição. O Comandante em Líquido, como era chamado pelos colegas em conversas sussurradas, faz sua entrada triunfal: cambaleante, mas cheio de uma autoridade que se dissolve como o álcool na corrente sanguínea.
Era chefe, sim, mas não liderava. Carregava o título, mas não o respeito. A cada noite, as garrafas no bar mais próximo se tornavam confidentes fiéis, e a sobriedade era deixada de lado como uma velha fotografia esquecida na gaveta. Na manhã seguinte, ele surgia, não como um jornalista íntegro, mas como um ser fragmentado, destituído de clareza e discernimento. Sua presença, que deveria ser um pilar de segurança e inspiração, transformava-se em um furacão de incertezas.
Os jovens jornalistas, aspirantes de um idealismo puro, encontravam nele não um mentor, mas um espelho rachado. As discussões de pauta eram atropeladas por discursos incoerentes, sua caneta tremia ao corrigir textos, e decisões cruciais eram adiadas ou tomadas no calor de um julgamento turvo. Assim como o protagonista do filme homónimo, O Comandante em Líquido, ele era um homem em conflito consigo mesmo, escravo de um vício que corroía tanto sua vida pessoal quanto sua capacidade de exercer liderança.
No filme, o comandante, um piloto de avião, entrega-se ao álcool mesmo diante da responsabilidade colossal de conduzir vidas. No momento de crise, suas habilidades instintivas salvam o dia, mas não sem expor o desastre ético que vinha escondendo. No caso do chefe de redação, a aeronave era a própria credibilidade do jornal, e os passageiros eram a sociedade que dependia da informação para formar suas opiniões. A diferença, porém, é que a salvação heroica raramente vinha. Sua incompetência, disfarçada de confiança inflada, deixava a redação à deriva, um barco sem leme num mar de informações que exigia precisão e integridade.
A ética e a deontologia, pilares do ofício jornalístico, eram atropeladas diariamente. O compromisso com a verdade, com a imparcialidade, era substituído por um jogo de vaidades e descuidos. Fontes confiáveis eram ignoradas; manchetes sensacionalistas emergiam, frutos de decisões apressadas. Como guiar uma equipa de jornalistas, quando não se é capaz de guiar a própria existência?
Se a redação fosse uma catedral, ele seria o sino desafinado, tocando em horas erradas, espalhando um som que em vez de chamar à reflexão, despertava o desconforto. O álcool tornava-se, ao mesmo tempo, sua máscara e sua ruína. Ele se via como um rebelde romântico, um Hemingway em meio às máquinas de escrever modernas, mas era, na verdade, um símbolo de decadência.
Os impactos eram profundos: a credibilidade do jornal se enfraquecia, a motivação dos subordinados definhava, e a verdade, o alicerce de qualquer redação, ficava soterrada sob o peso das omissões e distorções. Um chefe deveria inspirar; ele apenas embaraçava.
Sua tragédia, no entanto, não era apenas individual. Era também institucional e social. Na ausência de liderança ética, a redação não apenas falhava em seu papel de informar, mas traía sua função de zelar pelo bem público. Assim como no filme, onde o comandante enfrenta o dilema de assumir ou negar suas falhas, ele, na vida real, seguia ignorando as rachaduras em sua conduta.
A cada noite, as garrafas voltavam a ser seu consolo. A cada manhã, a redação o recebia com um silêncio pesado, misto de compaixão e descrença. Mas até quando? Até quando o jornalista poderia sobreviver sem enfrentar a verdade? Sua queda era inevitável, pois um comandante em líquido jamais conseguirá sustentar o peso da responsabilidade que o ofício jornalístico exige.
Em tempos de crise ética, quando a informação é arma e escudo, um líder comprometido é mais que necessário: é vital. Porém, ali estava ele, perdido entre as promessas do copo e a realidade que desmoronava ao seu redor. O Comandante em Líquido navegava em mares traiçoeiros, mas já sem leme, sem mapa, e, mais grave, sem consciência.
E o jornal, como a aeronave do filme, apenas esperava o momento em que o desastre fosse inevitável. Afinal, não há verdade que sobreviva sob o comando de quem se dissolve em álcool e negligência.