Por Kant de Voronha
No silêncio do meu escritório, na penumbra das minhas responsabilidades diárias, carrego uma culpa que pesa mais do que a injustiça que nos cerca. Vejo o povo nas ruas, enfrentando balas, cassetetes e gás lacrimogéneo, enquanto eu permaneço aqui, imóvel. Não porque não quero estar lá, mas porque o medo amarra meus pés e a necessidade de sobreviver cala minha voz.
Meu coração, no entanto, está nas ruas. Ele marcha ao lado daqueles que se erguem contra a mentira e a opressão, que gritam por um Moçambique livre, por uma verdade eleitoral que nos foi roubada. Cada grito abafado pela violência ressoa em mim como um eco de coragem reprimida. Eu vejo a luta, eu sinto a dor, mas estou preso. Preso ao medo de perder o pouco que tenho: o pão que sustenta meus filhos, o emprego que me mantém de pé em meio à miséria que devora o país.
“Manifeste-se!” — a voz do meu espírito clama. Mas, ao mesmo tempo, outra voz me paralisa: “E se te despedirem? E se te perseguirem? Como vais alimentar tua família? Como vais resistir sem nada?”
Este é o dilema do moçambicano comum. Somos todos manifestantes ocultos, guerrilheiros silenciosos numa guerra de opressão e sobrevivência. Enquanto uns erguem cartazes nas ruas, outros protestam em pensamento, em sussurros abafados no canto de suas casas. Não somos menos revoltados, nem menos comprometidos. Somos apenas mais acorrentados.
Venâncio Mondlane convocou o povo, e muitos responderam. Mas quantos mais, como eu, sofrem em silêncio? Quantos sentem o coração ferver de raiva enquanto mantêm o rosto neutro diante de chefes que se alinham ao sistema corrupto? Quantos mordem os lábios para não soltar a verdade que pode custar-lhes tudo?
Na rua, vejo os corajosos que desafiam a morte. Eles não têm nada a perder, e isso os torna invencíveis. Já eu, e muitos outros, somos reféns das migalhas que nos deram para nos calar. Essa realidade nos corrói, porque sabemos que estamos sendo cúmplices de uma tirania que só prospera porque o nosso silêncio a alimenta.
Mas a verdade é esta: eu também me manifesto. Minha luta pode ser diferente, mas não é menor. Me manifesto quando ensino meus filhos sobre justiça, mesmo vivendo num país que a distorce. Me manifesto quando converso, em segredo, com colegas que também anseiam por mudança, criando uma rede invisível de resistência. Me manifesto quando, mesmo temendo represálias, digo a verdade para aqueles que confiam em mim.
O que nos falta é romper as correntes do medo. A liberdade não virá até que percebamos que perder o pão hoje pode significar garantir uma colheita farta amanhã. Até quando ficaremos calados? Até quando permitiremos que a tirania se alimente de nosso medo, enquanto nossos irmãos morrem nas ruas, baleados pelos defensores dos opressores?
O povo moçambicano é resiliente, mas não podemos nos acomodar na resistência silenciosa. Não podemos deixar que o medo nos impeça de agir. Há um grito preso em cada um de nós, um grito que, se liberado, pode romper os muros da opressão.
Eu me manifesto, sim. E um dia, quando o pão não for mais uma arma de controle, quando o emprego não for mais moeda de chantagem, eu estarei lá, de mãos dadas com aqueles que hoje desafiam as balas. Por enquanto, minha luta é no coração, na mente, nos pequenos gestos de resistência.
Mas saiba disso: minha revolta cresce a cada dia. Meu silêncio não é eterno. E quando o povo que hoje assiste calado romper as correntes, os opressores conhecerão o poder da maioria. Moçambique, tua libertação está próxima. Mesmo os que hoje não gritam contigo, gritam por dentro. E, juntos, seremos uma só voz.
Eu também me manifesto. Não estou nas ruas, mas minha alma já rompeu os grilhões. E, cedo ou tarde, estarei lá. Porque não há pão que seja mais valioso do que a liberdade. E mais não disse!