
Por Kant de Voronha
É só o homem que deve prover a casa, a esposa, os filhos ou o lar?
Era uma manhã serena em Nampula, e a casa de Salima e Jorge parecia vibrar em sintonia com a brisa leve que atravessava as cortinas. Salima, professora dedicada, estava na cozinha, preparando o café enquanto Jorge, jornalista, organizava os cadernos escolares dos filhos. Entre olhares e sorrisos cúmplices, havia uma atmosfera de harmonia, o tipo que se constrói quando dois corações entendem que o amor não é uma hierarquia, mas uma parceria.
No entanto, nem sempre foi assim. Nos primeiros anos de casamento, Jorge sentia o peso das expectativas culturais e sociais. Crescera ouvindo que “o homem deve sustentar a casa”, uma máxima repetida com tanta frequência que parecia incontestável. Quando Salima decidiu continuar a trabalhar após o nascimento do primeiro filho, houve um choque de narrativas. Jorge, afundado na ideia de provedor, sentia-se fracassado, mesmo sabendo que o salário de Salima mantinha a estabilidade da família.
Salima, por sua vez, também enfrentava dilemas. O discurso emergente da emancipação feminina dizia-lhe que depender de Jorge era um retrocesso. Entre querer ajudar e temer parecer submissa, Salima começou a questionar seu papel. Ambos estavam presos em narrativas culturais que insistiam em dividir o lar em territórios de “ele” e “ela”, de “quem provê” e “quem cuida”.
Foi numa conversa franca, regada a lágrimas e abraços, que começaram a desconstruir essas armadilhas. Salima disse:
— Jorge, não é errado sentir o peso da responsabilidade, mas essa casa não é só tua. É nossa. O sustento, o amor, a criação dos nossos filhos… tudo isso é uma construção conjunta.
Essa conversa marcou o início de uma transformação. Decidiram olhar o lar como um projeto compartilhado. Não importava quem trazia mais dinheiro ou quem dobrava mais roupas. O que importava era que ambos estavam igualmente comprometidos com o sucesso da família.
O Mito do Provedor
O modelo do homem provedor é uma narrativa que vem sendo transmitida ao longo de gerações, associando masculinidade ao sustento financeiro e relegando às mulheres o papel de cuidadoras. Esse paradigma, muitas vezes idealizado, não apenas ignora as mudanças nas dinâmicas económicas e sociais, como também impõe pesos desiguais.
Hoje, muitas mulheres trabalham fora, ocupam cargos de liderança e têm a capacidade de contribuir financeiramente tanto quanto — ou mais — que seus parceiros. Mas ao mesmo tempo, algumas encontram dificuldades para equilibrar suas conquistas com as expectativas tradicionais de serem também responsáveis pelo lar. Esse duplo fardo não emancipa; exaure.
Homens, por outro lado, são frequentemente ensinados a medir seu valor pela capacidade de sustentar, o que os torna vulneráveis a sentimentos de fracasso quando não conseguem corresponder a esses padrões. Essa lógica opressiva transforma o casamento numa arena de disputas silenciosas, onde cada um luta contra suas próprias inseguranças.
Construindo um Lar a Dois
Desmistificar o papel de provedor exclusivo é libertador para ambos os cônjuges. O verdadeiro sucesso de um lar não está na conta bancária mais cheia nem na divisão tradicional das tarefas, mas na compreensão de que o casamento é uma comunhão de esforços.
Para isso, os casais devem dialogar abertamente sobre suas expectativas e limitações. Quem melhor conhece o equilíbrio das forças e fraquezas na relação do que aqueles que a vivem? Um lar equilibrado exige flexibilidade. Se um lava a louça enquanto o outro organiza as finanças, ambos estão contribuindo para o mesmo objetivo: o bem-estar coletivo. As contribuições não financeiras, como cuidar da casa ou criar os filhos, devem ser reconhecidas e respeitadas. Um lar saudável depende tanto do carinho quanto do sustento material. Portanto, é preciso ensinar às futuras gerações que o sucesso no casamento não se mede por quem paga as contas, mas por quem está disposto a construir junto.
Uma Nova Narrativa
Jorge e Salima hoje sabem que o lar é uma construção a quatro mãos, não um palco onde um brilha enquanto o outro é coadjuvante. Com cada passo dado em conjunto, desmentem a ideia de que um deve carregar o fardo sozinho.
Para os casais que ainda vivem sob a sombra dessa narrativa antiquada, fica o convite à reflexão: que tipo de legado vocês querem deixar? Um lar onde ambos são livres para contribuir como podem, sem opressões ou cobranças, é o maior sucesso que um casamento pode alcançar. E mais não disse!