
Por: Kant de Voronha
Eu não escrevo por vaidade. Escrevo porque arde. Arde cá dentro como lenha viva no peito de quem viu, de quem ouviu, de quem sofreu. Desde aquele dia (01/12/2014) em que as algemas comeram a minha carne, não me calo jamais. Escrevo porque a minha voz foi tantas vezes empurrada para o silêncio, para os cantos escuros do medo, onde as palavras tremem antes de sair. Mas mesmo assim, eu falo. Eu escrevo. Eu denuncio.
Lembro-me como se fosse agora, como se o tempo tivesse parado ali, a meio da Av. Francisco Manyanga, onde a farda da polícia municipal esmagou não só o meu direito de informar, mas também o meu corpo — com raiva cega e crueldade fria. Daquelas mãos que batiam, nasceu em mim um outro homem: ferido, sim, mas renascido com a coragem de um leão que já não teme a selva, nem se curva diante do rugido do poder.
Neste onze de Abril, quando celebramos o Dia Nacional do Jornalista Moçambicano, não consigo apenas sorrir para a câmara e fingir que está tudo bem. Porque eu sei — e muitos sabem — que ser jornalista neste nosso Moçambique é mais que profissão: é sobrevivência, é resistência, é um acto diário de coragem.
Chamam-nos de “Quarto Poder”, mas eu pergunto: poder de quê? Poder para quem? Eu já fui empurrado para o canto escuro do “quarto do poder” — esse espaço fechado onde se arquivam consciências e se amordaçam bocas. Ali onde o medo se serve frio, com ameaças, censura e despedimentos súbitos. Já me tiraram reportagens da pauta, já me rasgaram páginas antes da impressão, já me disseram: “isso não podes publicar”.
Ainda guardo, gravada na carne da lembrança, a voz do meu chefe a sussurrar com medo nos olhos: “Kant, este texto não podias ter escrito, muito menos publicado. As autoridades não gostam de verdades nuas… Vão te matar antes do sol nascer.” E eu, com a alma em brasa, vagueava pelas madrugadas em claro, buscando abrigo onde nem o vento ousasse tocar. Fugia das balas que me rondavam como lobos famintos, querendo devorar-me ainda vivo — levar-me, sem piedade, para o inferno da morte que cala bocas e apaga penas. Mas eu resisti. E mesmo tremendo, escrevi.
Eu já senti o suor frio escorrer quando uma fonte sumia de repente. Já me ligaram em voz baixa: “mano, deixa isso, estás a mexer com gente grande”. Já ouvi colegas a serem levados para interrogatório por causa de um título que doeu mais do que devia. Já assisti à falência de redações inteiras, onde a verdade morreu porque a publicidade do governo parou de chegar.
E mesmo assim, continuo.
Continuo porque acredito que informar o povo é um serviço sagrado. Porque cada vez que publico uma história, sinto que plantei uma semente de liberdade. Porque cada vez que aponto a câmara, não é apenas uma imagem que capto — é uma ferida que grito, é uma injustiça que documento.
Eu venho de uma redação sem ar-condicionado, onde os computadores partilham vírus como quem partilha pão. Onde jornalistas trabalham meses sem salário e mesmo assim continuam a dar voz às comunidades esquecidas — da Muhipiti a Zumbo, de Inhassunge a Mueda. Porque sabemos que, se nós não contarmos, ninguém mais vai contar.
Mas ser jornalista em Moçambique é, muitas vezes, estar na linha de frente sem colete. É ver a polícia a bater no manifestante e, depois, bater também no repórter. É fazer perguntas numa conferência de imprensa e ser ignorado, humilhado, rotulado. É publicar uma matéria investigativa e ver o nosso nome circular em grupos suspeitos.
E ainda assim, eu escrevo.
Porque sou filho da esperança. Porque vi colegas meus tombarem com dignidade — não por balas, mas por esgotamento, por fome, por abandono institucional. Porque sei que o nosso papel não é agradar, mas questionar. Não é bajular, mas iluminar.
Neste dia, eu não quero flores nem discursos bonitos. Quero dignidade. Quero salários justos, proteção legal, liberdade editorial. Quero um país onde ser jornalista não seja sinónimo de ser perseguido. Quero o direito de exercer a minha vocação sem ser empurrado para o “quarto do poder”, onde a verdade é trancada com cadeado.
Quero, sobretudo, que o povo entenda que a nossa luta é pela verdade que os afecta. Que cada notícia que publicamos é por ti, que estás aí sem hospital, sem estrada, sem justiça. A tua dor é a nossa pauta.
E enquanto eu tiver fôlego, caneta e coragem, eu não me calo.
Eu sou jornalista. Sou o quarto poder. E se me querem trancar no quarto do poder, que saibam: mesmo lá dentro, eu continuo a escrever nas paredes. E mais não disse!